28 de fevereiro de 2007

O puto

Ontem, ao final do dia, quando fui à creche buscar o puto, que tem 3 anos acabados de fazer, depois de instalado na sua cadeira de retenção, respondeu-me à sacramental pergunta diária:
"Então como é que te correu o dia?"
com um : " Sabes o J. é psicótico!"
e eu: " o quê? o J. é psicótico? mas porquê?"
responde o puto: " é psicótico, é! porque faz um grande barulho com o autoclismo e nós ficamos ansiosos e não conseguimos fazer xixi!"
e eu: "ficam ansiosos e não conseguem faxer xixi?"!

Inicialmente fiquei confusa, depois estabeleci um plano:
Parte A:
-clarificar o conceito de psicótico à escala de 3 anos, e de seguida explicar que não é uma boa ideia chamar aos nossos colegas psicóticos por mais barulhos estranhos que provoquem (pelo menos até termos aí uns 15 anos).
- quanto à ansiedade do autoclimo, nem toquei no assunto para não complicar mais a coisa e eu prória não ficar ansiosa o resto do dia.
Parte B:
- amanhã tenho que falar com a educadora, sobre os xixis, os ruídos dos autoclimos e a ansiedade daí decorrente!
- mas sobretudo tenho que ter mais cuidado com o que digo ao pé deste puto!!!!

Coincidências e Ambições Literárias

O MARIDO IDEAL

Em 1990 acabei o curso e fui trabalhar para uma IPSS onde partilhava a sala com mais 5 colegas. Uma delas, a Ana Paula, tinha tudo o que se poderia desejar: roupa da última moda, jóias, vivia na zona de Alcântara, numa casa requintadamente decorada que nos era descrita em pormenor, e tinha um marido, o Filipe!

O Filipe levava-a ao emprego, o Filipe ligava-lhe três a quatro vezes por dia, o Filipe tratava das compras, o Filipe tinha mota, o Filipe tinha uma profissão cheia de glamour, o Filipe tinha, o Filipe fazia... Até o nome, suava quente, doce, romântico, quase aristocrático - Filipe.

E eu, a morar na periferia, cheia de dificuldades financeiras, com uma vida banal e desinteressante, quantas vezes não sonhei com o Filipe, nas longas viagens de autocarro que fazia a caminho de Lisboa, nas noites de sexta e sábado a ver televisão, no meu universo de tédio, o Filipe transformou-se no marido ideal.

Inebriada por este marido perfeito que a Ana Paula trouxe para a minha vida, nunca equacionei a questão: eu nunca tinha visto o Filipe. Entretanto, a Ana Paula não viu o seu contrato de trabalho renovado e a história da sua vida perfeita com o seu marido ideal, devagarinho foi deixando o meu imaginário.

Passaram-se seis anos, divorciei-me, mudei de casa, mudei de emprego, conheci novos amigos e numa noite acabei a caminho de uma festa de aniversário de uma amiga de uma amiga onde estaria um recém divorciado, que a aniversariante gostaria de consolar... Eu, a viver à data um secreto romance, pouca importância dei à informação disponibilizada no carro antes da festa. Quando cheguei conheci o Luís, o marido abandonado, giro, sorriso fácil, afável. No final da noite, porque referi que ia a um congresso a Paris, trocamos números de telefone, porque ele queria que lhe trouxesse uns discos de vinil.

Dias depois, o Luís ligou, convidou-me para jantar para me poder dar mais indicações sobre os discos. No jantar, revelou-se um homem interessante, inteligente e culto, ainda que reservado. Dias depois, novo jantar, para lhe entregar os discos, mais conversas, maior proximidade e uma saída pela noite dentro. Nos dois meses seguintes, foram-se sucedendo jantares e encontros, até que um dia o Luís me convidou para ir a sua casa.

Nunca poderei esquecer aquela noite. Quando entrei, na sua bem decorada mansarda de Alcântara senti conhecer aquele cenário de algum lugar, ainda que não o conseguisse precisar, mas durante o serão o Luís começou a falar do seu trabalho. Perturbada, por memórias e perdida em reflexões, no esforço de recompor uma história, saí da sala. Lembro-me, que no corredor parei frente a um espelho, casualmente olhei para a correspondência que estava sobre a mesa e vi que era endereçada a um Luís Filipe! De repente tudo parecia encaixar... Voltei à sala e de chofre perguntei:”Olha lá a tua ex-mulher não se chama Ana Paula?” Ele surpreso, respondeu que sim, e eu em seguida voltei a perguntar: ”Então tu és o Filipe?” ele, com expressão de espanto respondeu que sim, que a sua família próxima lhe chamava Filipe e que a ex-mulher também tinha esse hábito. Comecei a rir, a rir até não poder mais e por entre gargalhadas contei-lhe a minha história, a nossa história.

Fiquei com ele nessa noite e em todas as outras dos últimos dez anos (com excepção das que passei na maternidade quando nasceu o nosso filho), até hoje mantenho o marido ideal, só que o meu é mais comum que o da Ana Paula, pois é apenas o meu marido e contínua a chamar-se Luís.

APB
Lisboa

História de vida, lida em antena pelo Miguel Guilherme, às 17h20, 21h40 ou 01h20, na Antena 1, da RDP, em 12 de Abril de 2006.

História Publicada em “Histórias Devidas”, 2006, Produções Fictícias, Asa Editores e autores.

Aqui "posto" esta história de um programa de rádio que me acompanha diariamente no regresso a casa. Gostei dela, da coincidência e do final.... sobretudo, gostei de a ter vivido!

Para a Camila

Não era um cão como os outros. Era um cão rebelde, caprichoso, desobediente, mas um de nós, o nosso cão, ou mais que o nosso cão, um cão que não queria ser cão e era cão como nós.

Manuel Alegre in "Cão Como Nós"

Foi para ti (VIII)

Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às româs a cor do lume.

Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde nos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.

Eugénio de Andrade in "Poesia e Prosa"

A Noite

Tenho medo da noite. É na noite que tudo acontece, que tudo, sempre, aconteceu. A noite aterroriza-me e fascina-me. A noite dos segredos, dos murmúrios, dos avisos, dos ruídos insólitos, dos silêncios carregados de palavras. A noite dos convites, das surpresas, dos fantasmas, dos sonhos. A noite da escuridão.

Rosa Lobato de Faria in " A Flor do Sal"

27 de fevereiro de 2007

27 de fevereiro 2007

Começo hoje o meu blog....para mim!